Nós, do Movimento Feminista Sudanês Noon, em colaboração com a Fundação “Janubia Horra” (Mulher do Sul Livre) no sul do Egito (Alto Egito), emitimos esta declaração em solidariedade com a Marcha Feminista Negra no Brasil, e em afirmação de nossa identidade negra como ato de resistência e libertação, confirmando que nossa justa causa reside nas complexas intersecções entre raça, classe e centralismo autoritário. Nosso objetivo é confrontar as ferramentas do imperialismo e estabelecer o princípio da justiça racial.
O propósito desta declaração é anunciar nosso compromisso com o legado da resistência feminista negra, e convocar a voz da margem para que se torne o centro do qual partimos para construir uma rede de solidariedade transfronteiriça, que rejeita todas as ilusões que fragmentam nossas afiliações e alimentam a crise de identidade.
Primeiro: A Identidade Negra como Força Política e Marco para a Libertação
Somos mulheres negras?
Esta pergunta não é uma indagação passageira, mas um convite à reflexão profunda sobre nossa identidade e história compartilhada. Em tempos de neocolonialismo e imperialismo renovado, tornou-se necessário reconsiderar como nos entendemos e como conectamos nossa identidade negra às nossas experiências cotidianas em uma sociedade que reproduz a marginalização e a discriminação.
Há décadas, nós — nas planícies de Damazin e nas montanhas de Jebel Marra, em Cartum e Nyala, nas aldeias de Assuã, Asyut, Qena e Sohag — carregamos em nossos corpos histórias que transcendem a aparência para formar uma identidade política e histórica que não aceita fragmentação. Somos descendentes das mulheres que araram, colheram e lutaram sem ajuda, que permaneceram firmes diante do colonialismo, da escravidão e da discriminação. Nossa identidade negra é a força que orienta esta luta e confirma que nenhuma opressão pode enfraquecer a voz das mulheres negras em qualquer lugar.
Portanto, em resposta à pergunta: Sim, somos, e não seremos nada além de mulheres negras.
Segundo: O Legado da Resistência e a História Feminista Negra
A voz de cada mulher sudanesa e do sul do Egito que diariamente sofre sob as ferramentas da opressão estrutural é um grito que se integra à nossa longa luta contra o racismo, o patriarcado e o impacto do colonialismo e suas novas ferramentas, confirmando que dignidade e liberdade são direitos originais e não opções que são concedidas ou retiradas.
Este legado nos obriga a reconstruir nosso sentimento de pertencimento como parte de uma resistência histórica e global, não apenas como uma batalha interna. Para fazer isso, devemos redefinir o pertencimento com base em valores, ideias e visões compartilhadas, não com base em cor, raça ou classe; todos nós estamos sob o domínio dos mesmos sistemas totalitários, e apenas alguns poucos desfrutam de privilégios alimentados por nossas diferenças.
Terceiro: Violência Estrutural e Intersecções da Discriminação
O que historicamente sofremos em formas de violência sistemática contra nós — desde o estupro como arma de guerra e deslocamento deliberado, passando pela marginalização econômica, até a exclusão cultural e o genocídio — não são eventos isolados. É uma estrutura enraizada que tem como alvo especificamente as mulheres negras vindas da margem, fora dos círculos de poder e privilégio. As mulheres negras e as mulheres na margem geográfica sudanesa e no sul do Egito enfrentam formas compostas de discriminação, tais como:
Ridicularização e estereotipagem social: No Egito, a personagem negra “saidi/núbia” continua sendo um eixo central de piadas que carregam racismo repugnante. Esta estereotipagem não se limita aos homens, mas se estende às mulheres, onde sua reputação e honra são alvos como parte de um ataque à entidade regional inteira. No Sudão, piadas e termos sarcásticos são usados da mesma forma para minar a posição de grupos de pele mais escura do oeste e do sul, reproduzindo a hierarquia racial dentro do discurso popular e legitimando a discriminação social e cultural contra essas comunidades, especialmente as mulheres.
Isolamento do movimento feminista: O movimento feminista no sul do Egito sofre de claro isolamento do movimento “central” no Cairo e arredores. As instituições feministas especializadas concentram-se no Baixo Egito, o que impede a melhoria das condições das mulheres no Alto Egito e a invisibilidade de suas questões. No Sudão, este isolamento se repete de forma semelhante, onde organizações feministas — e trabalho civil e político em geral — concentram-se na capital e centros urbanos, enquanto as vozes das mulheres nas regiões e margem social são marginalizadas, reproduzindo o centralismo de Cartum e seu domínio sobre o discurso feminista sudanês.
Costumes e tradições como arma de repressão: Os costumes e tradições tribais e comunitárias no Sudão e sul do Egito consolidam a autoridade patriarcal e causam a violação dos direitos das mulheres, especialmente as casadas nas áreas rurais. Esses costumes apoiam a masculinidade e reforçam a violência física, econômica e sexual dentro da família e da comunidade. No Sudão, essas tradições se transformam em ferramentas políticas e de segurança exploradas para controlar socialmente as mulheres e reprimir o movimento feminista, conectando a repressão social e a violência institucionalizada do Estado e da comunidade local igualmente. A violência sexual é usada como arma de guerra sistemática, onde documentamos “uma ampla gama de violência sexual”, que representa um elemento material do crime de genocídio. Esta violência composta confirma a natureza interseccional de nossa causa, onde se cruzam os efeitos da militarização, do patriarcado e do racismo.
Quarto: Solidariedade Transfronteiriça Rumo à Libertação Feminista Africana e Negra
Nossa solidariedade com as mulheres negras no Brasil e com todas as mulheres negras no mundo é um reconhecimento de que o que nos une é nossa história colonial compartilhada que se uniu em marginalizar, explorar e tentar apagar a humanidade e identidade de tudo que é negro — raízes, civilização e cultura. Desta consciência emerge nossa solidariedade como um ato político que confirma que a resistência e a busca pela justiça racial e libertação completa são uma luta única que atravessa fronteiras, unindo-nos no enfrentamento de sistemas de opressão onde quer que estejam.
Esta solidariedade se estende para incluir a luta de nossas irmãs no Norte da África, na Tunísia, onde mulheres negras de língua árabe, especialmente jornalistas como Yosra Bilali (3 de junho de 2024), enfrentam violência, discriminação e repressão sob regimes que reivindicam arabismo. A presença de jornalistas em prisões tunisianas ou ameaçadas de prisão é prova de que os regimes centrais usam as mesmas ferramentas de repressão, e que o racismo se manifesta em visar vozes livres que se recusam a impor uma identidade única.
Chegou a hora de encontrar os pontos comuns que nos unem, em vez de buscar constantemente reconhecimento individual ou coletivo de fora. A partir desta perspectiva, nossa libertação feminista negra é um objetivo que declara que nossa liberdade é una, indivisível e inseparável, e só pode ser alcançada com o colapso dos sistemas coloniais que a supremacia branca construiu sobre nossos corpos, nossa terra e nossa memória.
O Compromisso para o Futuro
Com base nesta consciência profunda, convocamos todas as mulheres negras no Sudão, Egito, Tunísia, Líbia, Argélia, Mauritânia, Saara Ocidental ocupado e todas as mulheres negras de língua árabe a construir redes de libertação e solidariedade em defesa da vida e da dignidade.
Estendemos nossas mãos às nossas irmãs e irmãos negros em todos os lugares, e permanecemos com eles em rejeição total a todas as formas de exploração e dominação colonial, afirmando nosso compromisso com a luta revolucionária de libertação negra.
Vamos escrever, sonhar e imaginar nossa resistência coletiva, e solidariedade feminista sólida e transfronteiriça, em defesa da vida e da dignidade, e em rejeição a todas as formas de exploração e dominação. Declaramos nosso compromisso de que nossa luta continuará enquanto os sistemas de opressão permanecerem, e que escreveremos, sonharemos e resistiremos, tomando nossa identidade negra como bússola para a libertação, e por um Sudão e Egito livres e dignos, e um mundo onde as vozes das mulheres negras sejam ouvidas sem medo ou tutela.
Emitido por:
Movimento Feminista Sudanês Noon em colaboração com a Fundação Janubia Horra Egípcia
Cartum / Cairo / Novembro de 2025

